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PAX ET CONCORDIA

PAX ET CONCORDIA
Pedro Américo

A SALA DAS BONECAS DE PANO (conto)

 Acompanhadas por seus pares, vetustos senhores em suas casacas engalanadas, cujas lapelas ostentavam muitas condecorações, as senhoras, em seus vestidos longos, iam adentrando o escarrático recinto que, de tempos em tempos – tempos estes embalsamados em memórias encanecidas –, via desfilar a hipocrisia de uma razão constituída por todos os interesses econômicos, quase sempre expressados em sacas de café estocadas em armazéns de portos ou de fazendas.

Sobre o piso de mármore, os passos dos convidados eram abafados pelo som da música vinda da orquestra especialmente contratada para o evento. Algumas vozes ainda eram ouvidas; no geral, entretanto, apenas sussurros enchiam as entranhas do ebúrneo salão.

As velhas senhoras riam seus risos de festa, enquanto os seus esposos, a pretexto de estabelecerem relações úteis a seus negócios, procuravam, reunidos em pequenos grupos aqui e ali, chamar a atenção de mulheres mais jovens, acreditando poder impressioná-las com suas casacas negras e suas medalhas reluzentes e seus baronatos em visível, franca decadência. Eles agiam segundo o que imaginavam ser: homens de bem, dignos e, por direito, donos do destino do país que habitavam e o qual comandavam, manipulando políticos e elegendo presidentes pela força de suas fortunas pessoais (e muitas nem eram mais tão pessoais assim…), calculadas pelos pés de café que possuíam, e preocupados apenas com o próprio progresso e bem-estar, enquanto o resto da população, menos aquinhoada pela providência divina, amargava as tristezas de uma indigência histórica.

Olhando, escondida atrás de uma cortina, do alto de uma escada, podia ver a movimentação dos convidados que iam enchendo esta noite de vida e de brilho. Afinal, uma festa é sempre uma festa, não importando o que as motivam ou os propósitos a que servem. Nela, há sempre a tradição do sonho e do fascínio despertados, em todos os níveis sociais, pelo “glamour”, em maior ou menor grau, dependendo de quem dela participe e do quanto possuam…

E assim, filosofando de mim para mim mesma, esperava o momento de ser chamada ao salão, quando aconteceria o que todos estavam ansiosamente aguardando: o anúncio do noivado da filha do Comendador Alcântara, proprietário de milhares de pés de café no interior paulista, com o muito rico banqueiro, o Dr. Otaviano Linhares do Rego Mendonça, do Banco da Agricultura. Ele, contando aí com os seus cinquenta anos, ao passo que eu, já uma moça pronta para casar-se, estava beirando a perigosa idade dos dezessete anos. Entretanto, o que ninguém ousava falar, nesta noite festiva, era que o Comendador submetia a sua única filha aos caprichos de seu maior e mais implacável credor, falido que estava, devido às reviravoltas do mercado de café, naqueles dias de dezembro do sombrio, negro ano de 1929, quando parecia que o mundo agonizava, perdido em sua “cornucópia” megalomaníaca.

Viúvo, o solitário banqueiro exigiu de seu devedor que, em troca da redução das dívidas, este deveria conceder-lhe a mão de sua filha em casamento. O “Senhor Banqueiro” tinha decidido que era chegada a hora de novamente constituir família com uma boa moça de seu meio social, haja vista o fato de que sua primeira esposa não foi capaz, devido às complicações de saúde que trazia consigo desde criança – e que a vitimaram logo depois de ter-se casado –, de gerar filhos que lhe continuassem os negócios. Dentre eles – e principalmente! – o Banco da Agricultura.

Foi por isso que eu vim parar detrás destas cortinas, no alto desta escada, curiosa em saber como será o homem responsável por minha saída da casa dos meus pais, abrigando-me sob o teto que é seu e exigindo de mim que compartilhe sua cama e exclua, completamente, a vida que me foi peculiarmente conhecida até agora, com todas as suas reminiscências, e lhe oferte o meu corpo, que deveria me pertencer por direito natural e divino…

Os violinos espalhavam suas notas musicais, harmoniosas e oniscientes, pelo salão que abrigava, mais do que aquela festa, a morte dos meus sonhos, dos meus anseios e de meus delírios juvenis… Era tanta expectativa e tristeza, que o meu coração parecia – tão descompassado estava – querer saltar do meu peito, projetando-se para fora da minha boca. As minhas mãos suavam tanto que, a intervalos, era obrigada a passá-las pelo vestido que estava usando. E foi justamente quando ia passar, mais uma vez, as minhas mãos suadas pelo vestido, que vi minha mãe subindo a escada, de degrau em degrau: tinha chegado o momento de conhecer o meu futuro marido, compreendi. E mais do que isso: talvez o meu senhor! Porque, nestes e em todos os tempos, a nós, mulheres, só nos permitiram a natureza de nossos corpos e a redundância de nossa beleza.

– Filha, venha!

– Sim, mamãe… - A minha voz saiu quase num sussurro e foi estrangulada pela insurgência de algumas lágrimas, ainda que tímidas. Vendo isto, minha mãe pegou entre as suas as minhas mãos e, com os olhos marejados, beijou-me a face. Foi um beijo apenas, e nele estava contido toda a solidariedade de criaturas unidas, irmanadas em um único destino e uma só certeza: o de que casariam com homens que não amavam para procriarem filhos da própria desesperança existencial.

Sem dizer uma única palavra que desse alento ou que me fizesse resignada quanto ao que me esperava, minha mãe acompanhou-me escada abaixo, onde já aguardavam meu pai e um senhor de estatura baixa, calvo, magro e de grandes costeletas a preencher-lhe quase todo o rosto marcado pela varíola; um pincenê equilibrando-se sobre o nariz muito fino e pontiagudo, com um sorriso mal insinuado em seus lábios murchos.
No último degrau da escada o meu pai me tomou pelo braço e me apresentou o cavalheiro de má catadura:

– Filha, este é o doutor Otaviano Linhares do Rego Mendonça, que pediu a mim a sua mão em casamento, e que aceitei prontamente, por acreditá-lo o homem sincero e de ótima índole…

(Reunidos à nossa volta, os convidados aplaudiram, com gritos de “viva os noivos!”)

Meu pai foi breve, parecia um ator pouco à vontade na incumbência de um papel incômodo, embora soubesse que teria de desempenhá-lo, mesmo a contragosto. Eu me limitei a estender a mão para que ela fosse beijada pelo senhor que me foi apresentado. Mas, ao sentir o toque de seus lábios em minha pele, todo o meu ser foi tomado por uma repulsa tão grande, que eu quis fugir dali imediatamente. Contudo, não fiz isto e apenas sorri, baixando os meus olhos, da forma que bem convinha a uma moça desta minha posição. E vi que todos ficaram contentes, pois as minhas ações condiziam mesmo com as de uma jovem muito bem-educada, segundo presumiam que eu fosse. No entanto, o que todos eles não podiam entender é que a minha alma estava presa, estava condenada por cada uma daquelas terríveis marcas de varíola estampadas naquele rosto enformolizado pelo tempo. Ao olhar o senhor doutor Otaviano Linhares do Rego Mendonça, para o rosto varioloso, me ocorreu que bem poderia ter sido o seu estado variólico e suas pústulas que mataram sua primeira esposa…

Fui obrigada, pelas circunstâncias, a dançar com ele. A verdade, no entanto, é que bailei com as suas pústulas, com as marcas que lhe ficaram, em seu rosto e, possivelmente, em seu corpo, como a querer provar, de forma irretorquível, a falibilidade divina.

Entrementes, depois de algum tempo – que me pareceu uma eternidade –, eu consegui sair sem que minha ausência fosse notada, profundamente entristecida, pois tinha sonhado com esta noite como sendo a mais especial da minha vida.

(Era então a realidade um pesadelo torturantemente cruel? O que eu fiz para merecer um variólico, em vez de um príncipe?)

Senti-me aliviada por ter saído de perto de toda aquela gente hipócrita, que jamais saberia o que o ato de sonhar representava para mim. Fui para outro “canto” da casa, quase sempre silenciosa, em que morava. E esta era, também, uma sala grande, majestosa, imponente e, como o resto, igualmente fria. À exceção de um detalhe: todas as bonecas de pano que eu guardei ao longo dos meus dezessete anos, da primeira à última, todas estavam lá, num lugarzinho só delas.

Uma sala inteira só para elas... Ali era o “mundo” para onde eu costumava vir quando queria me esconder de alguém ou de alguma coisa que não me agradasse. Sim, este era o meu refúgio! O “palácio” de todas as minhas bonecas de pano; que todas elas existiam de vários tamanhos e cores e formas. Elas, que foram feitas por minha ama de leite, a quem amei muito. Uma negra, então velha, arrancada da faina louca da lavoura cafeeira para alimentar, com o seu “produto”, a síntese de sua alma sofrida, a branca senhora, a “nhazinha” do “inhô”. Ah!, se soubesses, minha mãe negra, o quanto são lindas as bonecas que fizestes só para mim… Sei que as recheastes, mais do que com retalhos – e que outras serventias eles teriam? -, também de sonhos que eu deveria, queria sonhar. Ah!, se soubesses, minha mãe, que eu não sonharei todos os sonhos nelas amorosamente guardados… todos os sonhos nelas contidos. Que a felicidade que nestas minhas bonecas de pano reservastes só para mim, eu não as terei! O meu destino era outro, agora. Um pesadelo, com início porém sem fim, povoado por pústulas, de prole imensa... jamais de amor e de sonhos e de paixão… e de felicidade. Para além destas nossas bonecas, minha mãe negra, está a realidade… e ela é variólica!

Abracei-me a uma destas minhas bonecas que apanhei ao acaso e me deixei levar por aquela atmosfera de sonhos e de fantasias. Deixei-me embalar pela agradável sensação que aquele abraço me proporcionava… e adormeci.

Fui despertada por uma leve pressão no ombro. Uma fímbria de luz invadia a sala, enquanto o tempo era uma incógnita. Para além da porta que se antepunha entre mim e um destino que se anunciava de impiedosas incertezas, os sons dos violinos e dos passos das pessoas que ainda bailavam sobre as exéquias de todos os meus sonhos de felicidade, faziam-se ouvir, como de propósito, a fim de esbofetearem o meu rosto e tripudiarem sobre a minha alma em rubras chagas ostracismificadas. Virei-me para quem tinha pressionado o meu ombro tão delicadamente e o que vi me encheu de um estranho medo... Na verdade o medo era um misto de encanto reticente e desejo mal contido, já que à minha frente estava o mais belo rapaz que já tinha visto; as janelas envidraçadas que nos guarneciam ali ainda mais brilhantes deixavam os seus olhos, ao ser varadas pelas luzes que vinham das estrelas. Levantei-me no mesmo instante e, hipnotizada por lábios que jamais fariam parte de meu futuro ao lado do “Senhor Banqueiro”, permiti que os nossos corpos se unissem em um abraço e as nossas bocas se fundissem em um beijo de demoníacos, loucos, atrevidos pecados. Sua língua e a minha invadiram-se mutuamente e, rápidas como o segundo que nos uniu naquele abraço, momentos antes, suas mãos passearam por sobre os meus seios já quase nus. Ao toque de seus dedos, meus mamilos enrijeceram e um calor extremo aqueceu todo o meu corpo. Logo, suas mãos ágeis me livraram de toda a roupa que usava, ao mesmo tempo em que fazia o meu corpo – em volúpias consumido – acomodar-se sobre o piano que preenchia o restante do espaço da sala onde ficavam as minhas bonecas de pano amadas.

Com a mesma destreza com que me livrou das minhas roupas, também se livrou das suas e se posicionou sobre o meu corpo, já inteiramente entregue aos caprichos de um homem jovem. Ele introduziu-se em mim, trêmulo de desejo e de ansiedade. Da nervosa ansiedade que têm todos os homens ante um corpo de mulher. E a dor daquele ato primeiro foi a mais santa de todas as dores e o sangue vertido, o mais puro. Eu quis… como uma mulher de verdade deve querer, eu quis!

O meu ventre explodiu em espasmos sucessivos, que percorreram todo o meu corpo, fazendo escorrer entre as minhas pernas uma “calda morna”, ficando em poças sobre o piano que nos servira de leito…

(Deitada sobre o piano perdido numa sala repleta de sonhos e de esperanças, a carne jaz inerte e a alma quedava-se, saciada, em êxtase profundo!).

No instante seguinte, apenas um instante após me recuperar da maravilhosa sensação de prazer que sentira, procurei-o perto de mim, mas não o encontrei... Foi então que ouvi um leve barulhinho na janela e, pressentindo a sua partida, corri para vê-lo uma última vez. Encontrei a janela aberta, uma brisa soprou meu rosto e, elevando os olhos para um céu de luar intenso e de estrelas salpicado, eu ainda pude vê-lo partir… Ele foi-se em asas de anjo… longas asas de anjo.


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