Acompanhadas por seus pares, vetustos senhores em suas casacas
engalanadas, cujas lapelas ostentavam muitas condecorações, as
senhoras, em seus vestidos longos, iam adentrando o escarrático
recinto que, de tempos em tempos – tempos estes embalsamados em
memórias encanecidas –, via desfilar a hipocrisia de uma razão
constituída por todos os interesses econômicos, quase sempre
expressados em sacas de café estocadas em armazéns de portos ou de
fazendas.
Sobre o piso de mármore, os passos dos convidados eram abafados pelo
som da música vinda da orquestra especialmente contratada para o
evento. Algumas vozes ainda eram ouvidas; no geral, entretanto,
apenas sussurros enchiam as entranhas do ebúrneo salão.
As velhas senhoras riam seus risos de festa, enquanto os seus
esposos, a pretexto de estabelecerem relações úteis a seus
negócios, procuravam, reunidos em pequenos grupos aqui e ali, chamar
a atenção de mulheres mais jovens, acreditando poder
impressioná-las com suas casacas negras e suas medalhas reluzentes e
seus baronatos em visível, franca decadência. Eles agiam segundo o
que imaginavam ser: homens de bem, dignos e, por direito, donos do
destino do país que habitavam e o qual comandavam, manipulando
políticos e elegendo presidentes pela força de suas fortunas
pessoais (e muitas nem eram mais tão pessoais assim…), calculadas
pelos pés de café que possuíam, e preocupados apenas com o próprio
progresso e bem-estar, enquanto o resto da população, menos
aquinhoada pela providência divina, amargava as tristezas de uma
indigência histórica.
Olhando, escondida atrás de uma cortina, do alto de uma escada,
podia ver a movimentação dos convidados que iam enchendo esta noite
de vida e de brilho. Afinal, uma festa é sempre uma festa, não
importando o que as motivam ou os propósitos a que servem. Nela, há
sempre a tradição do sonho e do fascínio despertados, em todos os
níveis sociais, pelo “glamour”, em maior ou menor grau,
dependendo de quem dela participe e do quanto possuam…
E assim, filosofando de mim para mim mesma, esperava o momento de ser
chamada ao salão, quando aconteceria o que todos estavam
ansiosamente aguardando: o anúncio do noivado da filha do Comendador
Alcântara, proprietário de milhares de pés de café no interior
paulista, com o muito rico banqueiro, o Dr. Otaviano Linhares do Rego
Mendonça, do Banco da Agricultura. Ele, contando aí com os seus
cinquenta anos, ao passo que eu, já uma moça pronta para casar-se,
estava beirando a perigosa idade dos dezessete anos. Entretanto, o
que ninguém ousava falar, nesta noite festiva, era que o Comendador
submetia a sua única filha aos caprichos de seu maior e mais
implacável credor, falido que estava, devido às reviravoltas do
mercado de café, naqueles dias de dezembro do sombrio, negro ano de
1929, quando parecia que o mundo agonizava, perdido em sua
“cornucópia” megalomaníaca.
Viúvo, o solitário banqueiro exigiu de seu devedor que, em troca da
redução das dívidas, este deveria conceder-lhe a mão de sua filha
em casamento. O “Senhor Banqueiro” tinha decidido que era chegada
a hora de novamente constituir família com uma boa moça de seu meio
social, haja vista o fato de que sua primeira esposa não foi capaz,
devido às complicações de saúde que trazia consigo desde criança
– e que a vitimaram logo depois de ter-se casado –, de gerar
filhos que lhe continuassem os negócios. Dentre eles – e
principalmente! – o Banco da Agricultura.
Foi por isso que eu vim parar detrás destas cortinas, no alto desta
escada, curiosa em saber como será o homem responsável por minha
saída da casa dos meus pais, abrigando-me sob o teto que é seu e
exigindo de mim que compartilhe sua cama e exclua, completamente, a
vida que me foi peculiarmente conhecida até agora, com todas as suas
reminiscências, e lhe oferte o meu corpo, que deveria me pertencer
por direito natural e divino…
Os violinos espalhavam suas notas musicais, harmoniosas e
oniscientes, pelo salão que abrigava, mais do que aquela festa, a
morte dos meus sonhos, dos meus anseios e de meus delírios juvenis…
Era tanta expectativa e tristeza, que o meu coração parecia – tão
descompassado estava – querer saltar do meu peito, projetando-se
para fora da minha boca. As minhas mãos suavam tanto que, a
intervalos, era obrigada a passá-las pelo vestido que estava usando.
E foi justamente quando ia passar, mais uma vez, as minhas mãos
suadas pelo vestido, que vi minha mãe subindo a escada, de degrau em
degrau: tinha chegado o momento de conhecer o meu futuro marido,
compreendi. E mais do que isso: talvez o meu senhor! Porque, nestes e
em todos os tempos, a nós, mulheres, só nos permitiram a natureza
de nossos corpos e a redundância de nossa beleza.
– Filha, venha!
– Sim, mamãe… - A minha voz saiu quase num sussurro e foi
estrangulada pela insurgência de algumas lágrimas, ainda que
tímidas. Vendo isto, minha mãe pegou entre as suas as minhas mãos
e, com os olhos marejados, beijou-me a face. Foi um beijo apenas, e
nele estava contido toda a solidariedade de criaturas unidas,
irmanadas em um único destino e uma só certeza: o de que casariam
com homens que não amavam para procriarem filhos da própria
desesperança existencial.
Sem dizer uma única palavra que desse alento ou que me fizesse
resignada quanto ao que me esperava, minha mãe acompanhou-me escada
abaixo, onde já aguardavam meu pai e um senhor de estatura baixa,
calvo, magro e de grandes costeletas a preencher-lhe quase todo o
rosto marcado pela varíola; um pincenê equilibrando-se sobre o
nariz muito fino e pontiagudo, com um sorriso mal insinuado em seus
lábios murchos.
No último degrau da escada o meu pai me tomou pelo braço e me
apresentou o cavalheiro de má catadura:
– Filha, este é o doutor Otaviano Linhares do Rego Mendonça, que
pediu a mim a sua mão em casamento, e que aceitei prontamente, por
acreditá-lo o homem sincero e de ótima índole…
(Reunidos à nossa volta, os convidados aplaudiram, com gritos de
“viva os noivos!”)
Meu pai foi breve, parecia um ator pouco à vontade na incumbência
de um papel incômodo, embora soubesse que teria de desempenhá-lo,
mesmo a contragosto. Eu me limitei a estender a mão para que ela
fosse beijada pelo senhor que me foi apresentado. Mas, ao sentir o
toque de seus lábios em minha pele, todo o meu ser foi tomado por
uma repulsa tão grande, que eu quis fugir dali imediatamente.
Contudo, não fiz isto e apenas sorri, baixando os meus olhos, da
forma que bem convinha a uma moça desta minha posição. E vi que
todos ficaram contentes, pois as minhas ações condiziam mesmo com
as de uma jovem muito bem-educada, segundo presumiam que eu fosse. No
entanto, o que todos eles não podiam entender é que a minha alma
estava presa, estava condenada por cada uma daquelas terríveis
marcas de varíola estampadas naquele rosto enformolizado pelo tempo.
Ao olhar o senhor doutor Otaviano Linhares do Rego Mendonça, para o
rosto varioloso, me ocorreu que bem poderia ter sido o seu estado
variólico e suas pústulas que mataram sua primeira esposa…
Fui obrigada, pelas circunstâncias, a dançar com ele. A verdade, no
entanto, é que bailei com as suas pústulas, com as marcas que lhe
ficaram, em seu rosto e, possivelmente, em seu corpo, como a querer
provar, de forma irretorquível, a falibilidade divina.
Entrementes, depois de algum tempo – que me pareceu uma eternidade
–, eu consegui sair sem que minha ausência fosse notada,
profundamente entristecida, pois tinha sonhado com esta noite como
sendo a mais especial da minha vida.
(Era então a realidade um pesadelo torturantemente cruel? O que eu
fiz para merecer um variólico, em vez de um príncipe?)
Senti-me aliviada por ter saído de perto de toda aquela gente
hipócrita, que jamais saberia o que o ato de sonhar representava
para mim. Fui para outro “canto” da casa, quase sempre
silenciosa, em que morava. E esta era, também, uma sala grande,
majestosa, imponente e, como o resto, igualmente fria. À exceção
de um detalhe: todas as bonecas de pano que eu guardei ao longo dos
meus dezessete anos, da primeira à última, todas estavam lá, num
lugarzinho só delas.
Uma sala inteira só para elas... Ali era o “mundo” para onde eu
costumava vir quando queria me esconder de alguém ou de alguma coisa
que não me agradasse. Sim, este era o meu refúgio! O “palácio”
de todas as minhas bonecas de pano; que todas elas existiam de vários
tamanhos e cores e formas. Elas, que foram feitas por minha ama de
leite, a quem amei muito. Uma negra, então velha, arrancada da faina
louca da lavoura cafeeira para alimentar, com o seu “produto”, a
síntese de sua alma sofrida, a branca senhora, a “nhazinha” do
“inhô”. Ah!, se soubesses, minha mãe negra, o quanto são
lindas as bonecas que fizestes só para mim… Sei que as recheastes,
mais do que com retalhos – e que outras serventias eles teriam? -,
também de sonhos que eu deveria, queria sonhar. Ah!, se soubesses,
minha mãe, que eu não sonharei todos os sonhos nelas amorosamente
guardados… todos os sonhos nelas contidos. Que a felicidade que
nestas minhas bonecas de pano reservastes só para mim, eu não as
terei! O meu destino era outro, agora. Um pesadelo, com início porém
sem fim, povoado por pústulas, de prole imensa... jamais de amor e
de sonhos e de paixão… e de felicidade. Para além destas nossas
bonecas, minha mãe negra, está a realidade… e ela é variólica!
Abracei-me a uma destas minhas bonecas que apanhei ao acaso e me
deixei levar por aquela atmosfera de sonhos e de fantasias. Deixei-me
embalar pela agradável sensação que aquele abraço me
proporcionava… e adormeci.
Fui despertada por uma leve pressão no ombro. Uma fímbria de luz
invadia a sala, enquanto o tempo era uma incógnita. Para além da
porta que se antepunha entre mim e um destino que se anunciava de
impiedosas incertezas, os sons dos violinos e dos passos das pessoas
que ainda bailavam sobre as exéquias de todos os meus sonhos de
felicidade, faziam-se ouvir, como de propósito, a fim de
esbofetearem o meu rosto e tripudiarem sobre a minha alma em rubras
chagas ostracismificadas. Virei-me para quem tinha pressionado o meu
ombro tão delicadamente e o que vi me encheu de um estranho medo...
Na verdade o medo era um misto de encanto reticente e desejo mal
contido, já que à minha frente estava o mais belo rapaz que já
tinha visto; as janelas envidraçadas que nos guarneciam ali ainda
mais brilhantes deixavam os seus olhos, ao ser varadas pelas luzes
que vinham das estrelas. Levantei-me no mesmo instante e, hipnotizada
por lábios que jamais fariam parte de meu futuro ao lado do “Senhor
Banqueiro”, permiti que os nossos corpos se unissem em um abraço e
as nossas bocas se fundissem em um beijo de demoníacos, loucos,
atrevidos pecados. Sua língua e a minha invadiram-se mutuamente e,
rápidas como o segundo que nos uniu naquele abraço, momentos antes,
suas mãos passearam por sobre os meus seios já quase nus. Ao toque
de seus dedos, meus mamilos enrijeceram e um calor extremo aqueceu
todo o meu corpo. Logo, suas mãos ágeis me livraram de toda a roupa
que usava, ao mesmo tempo em que fazia o meu corpo – em volúpias
consumido – acomodar-se sobre o piano que preenchia o restante do
espaço da sala onde ficavam as minhas bonecas de pano amadas.
Com a mesma destreza com que me livrou das minhas roupas, também se
livrou das suas e se posicionou sobre o meu corpo, já inteiramente
entregue aos caprichos de um homem jovem. Ele introduziu-se em mim,
trêmulo de desejo e de ansiedade. Da nervosa ansiedade que têm
todos os homens ante um corpo de mulher. E a dor daquele ato primeiro
foi a mais santa de todas as dores e o sangue vertido, o mais puro.
Eu quis… como uma mulher de verdade deve querer, eu quis!
O meu ventre explodiu em espasmos sucessivos, que percorreram todo o
meu corpo, fazendo escorrer entre as minhas pernas uma “calda
morna”, ficando em poças sobre o piano que nos servira de leito…
(Deitada sobre o piano perdido numa sala repleta de sonhos e de
esperanças, a carne jaz inerte e a alma quedava-se, saciada, em
êxtase profundo!).
No instante seguinte, apenas um instante após me recuperar da
maravilhosa sensação de prazer que sentira, procurei-o perto de
mim, mas não o encontrei... Foi então que ouvi um leve barulhinho
na janela e, pressentindo a sua partida, corri para vê-lo uma última
vez. Encontrei a janela aberta, uma brisa soprou meu rosto e,
elevando os olhos para um céu de luar intenso e de estrelas
salpicado, eu ainda pude vê-lo partir… Ele foi-se em asas de anjo…
longas asas de anjo.
Ailton São Paulo
Ailton São Paulo